terça-feira, 18 de junho de 2013

O Silêncio no Andar de Cima


            O vento sopra nos palácios. Pelos corredores vazios, tufos de grama seca deslizam fantasmagóricos. Aturdida, a primeira dama - de robe cor-de-rosa, rolinhos e pantufas combinando - arregala os olhos em direção ao marido. O homem da casa, a bordo de um pijama de monograma bordado no bolso, fala para a mulher não acender a luz. "Deixa eles pensarem que nós estamos dormindo. Ou que não tem ninguém em casa." Ela, a ingênua, ainda pergunta: "Você não vai falar com eles?". Ele, veloz: "Tá louca? Deixa assim. Eles cansam e vão embora."
            Deve ser mais ou menos essa, com pequenas variações, as cenas nos endereços do poder brasileiro nesses últimos dias. A rua se manifesta em altos brados e o Poder se faz de morto. Finge que não escutou. Ou, pior ainda, olha com desdém esses "arroubos juvenis". Há realmente uma técnica de deixar a turba acalmar e tudo voltar ao de antes no quartel do Abrantes. Quase sempre funciona, mas o diabo é que às vezes, não. É preciso ficar de olho.
            Líderes carismáticos não surgem da noite para o dia. Getúlio, Jânio, Maluf, Covas, FHC, Lula. Gostemos ou não desses homens, eles sabiam e sabem cativar seus seguidores. Têm "o dom". Agora, passemos em revista os atuais chefes da tribo - puxando o foco para São Paulo: Dilma, Alckmin e Haddad são herdeiros de figuras de tanta personalidade que a eles sobrou pouco para apresentar.
            Geraldo ainda tem uma experienciazinha maior, há tantos anos no poder. Mas não é por acaso que ganhou o apelido que colou feito tatuagem: Picolé de Chuchu. Dilma e Haddad parecem seguir à risca os conselhos de Lula. Acontece que os silêncios de Lula, devido à trajetória pessoal dele, sempre tiveram mais eloquência do que os silêncios de Dilma e Haddad.
            Nem a presidente nem o prefeito de São Paulo, muito menos o governador, são líderes natos. A falta de postura, a consciência de quem não sabe o que fazer quando a coisa aperta, aparece nessas horas. No começo do mandato, Dilma ainda tentou mostrar-se a "tia" que dá bronca, que não tolera funcionário esculachado, etc. Foi sua lua-de-mel com eleitores cansados do presidente que sacudia a cabeça a cada travessura de seus meninos.
            Acontece que os meninos agora são outros. Vêm das ruas, saíram dos becos e tomaram conta das praças. Começaram reclamando do aumento das passagens de ônibus e levaram como troco os esperados olhares de desdém do andar de cima. A moçada insistiu e o pessoal lá de riba mandou a polícia sentar o pau. Foi o que faltava para que gente que sorria dos "meninos sonhadores" também decidisse ir às ruas.
            A turma dos coroas que foi à rua levou um susto. "Falta liderança", "não existe uma causa específica"... É, amigos, a revolução está chegando e eu não sei o que vestir (título de uma peça de teatro italiana, dos anos 80) - mas é preciso saber ler as novas passeatas surgidas à luz das redes sociais. Nos anos 80, todos vestimos amarelo e fomos reivindicar diretas-já. Pintamos o rosto e fomos exigir a queda de Collor. Eram outros tempos, outros manifestos.
            A falta de uma causa única, devemos agradecer e colocar na conta da Democracia pela qual tanto brigamos. A juventude que está gritando por aí não é uma, é várias. Ou são várias. Cada passeata não quer apenas a redução da tarifa de ônibus, mas exige também a não aprovação da PEC-37, reivindica mais cota pra concursos públicos, defende o aborto e o casamento gay, quer o fim da poluição e o impeachment de todo mundo que está aí. É assim mesmo, uma variedade grande de objetivos (e pra nós, que estamos chegando agora nessas paradas, é bom ficar atento e não ser fotografado ao lado de uma faixa que defende tudo aquilo que você mais abomina).
            Isolados, cada um desses grupos não tem força para atrair muita gente. Unidos numa só passeata, eles atraem mais gente, se sentem mais protegidos e voltam pra casa crentes que, agora sim, o mundo muda. É por isso que não há liderança única. São vários líderes e, com cada um, a conversa tem um tom.
            Com a turma que vai pra passeata disposta a tacar fogo em tudo, a conversa precisa ser mais séria - eu acho - sem que isso acabe em tiroteio, feridos e mortos. Mas, também esse grupo mais incendiário está mandando seu recado aos poderosos: "O que nos revolta é o descaso do Poder."
             Não foi por outro motivo que os alvos atacados ontem, dia de manifestações pacíficas em sua maioria, foram o Congresso Nacional, o Palácio dos Bandeirantes e a Assembleia Legislativa do Rio. A turbinha não tem líder, mas sabe farejar onde viceja o fungo da corrupção.
            Chega de silêncio, Andar de Cima. Não dá mais pra fazer de conta. A coisa é com vocês, sim.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Coloridos pigmeus do bulevar


            Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Longe dos 3 milhões de passantes, mas igualmente distante dos 220 mil contados pelo UOL, a Parada Gay deste ano em São Paulo reuniu gente suficiente para um desfile de duas horas ininterruptas. Foi o tempo que fiquei parado na frente do Conjunto Nacional, vendo passar 16 trios elétricos - quase carros alegóricos, de tão enfeitados no andar de cima. Com algumas exceções, como o carro da festa Gambiarra, a maioria dos trios era bancada pelo movimento sindical, numa necessidade quase romântica da organização dar à Parada um tom mais "sério" e menos "carnavalesco".
            Bobagem. No Brasil, a Parada é uma festa e é por isso que atrai tanta gente. Já atraiu mais, é verdade, mas os excessos do passado assustaram. A chuva que despencou na manhã de domingo (não foi, como disseram alguns jornalistas desconhecedores da língua pátria, uma chuva 'intermitente') estimulou muita gente a ficar em casa, no quentinho do cobertor. A violência despoliciada da Virada Cultural também assustou. No fim, foi uma das paradas mais tranquilas, com apenas meia dúzia de mijões presos, acusados de atentado ao pudor. Beira o ridículo a acusação: num desfile em que destaques se cobrem com sungas menores que um dedal, rebolando lascivamente, acusar um mijão de atentado ao pudor é piada. Mais honesto seria prendê-los por sujar a cidade.
            Não houve multidões assustadoras, não houve violência e a equipe de garis limpava as ruas - a Paulista, pelo menos - já durante o desfile geral. O que, então, teria feito a Parada parecer tão reduzida, especialmente aos olhos dos formadores de opinião, mesmo daqueles militantes do movimento gay antenado? Talvez a explicação esteja na "qualidade" de quem veio se divertir na festa. Era "o povo da perifa, de Itaquera, Campo Limpo, Guaianazes, Vila Sabrina"... Era o que a classe média bacana e estudada chama de "gente feia".
            Era mesmo uma população que não se vê nos Jardins - a não ser usando uniformes de faxina, porteiro ou empregada. Eram pessoas vindas de longe - dois ônibus, metrô, trem, tudo junto - para exibir-se na avenida símbolo de uma cidade que também é deles. Quando aqueles meninos e meninas, usando roupas  que só muito vagamente lembram as "de grife", rebolavam os quadris no cruzamento da Paulista com a Augusta, alguma coisa acontecia em seus corações. A cidade era deles, mesmo que apenas durante uma parada.
            No primeiro momento, cheguei a pensar que a visibilidade dos adolescentes gays em bairros distantes da Paulista estava bem avançada. Olhando aqueles rostos maquiados, com perucas meia-boca e boás da 25 de Março, pensei que devia ser muito difícil pra eles fingir um comportamento hétero. Ousada, a molecada dançante. Depois, voltando pra casa, continuei matutando: a barra pra eles continua tão pesada quanto antes, mas talvez agora tenham mais coragem de se expor. Será?
            Isso talvez explicasse aquela "invasão" à Paulista. Era ali, na avenida mais cara de São Paulo, que eles vinham impor a própria cara. Não há espaço melhor, menos agressivo, mais adequado. Protegidos por batalhões de policiais - que não vão bater, nem humilhar, nem nada -, os meninos e meninas com visual pós-andrógino podiam dançar na rua como se não houvesse amanhã. Não haveria mesmo um amanhã igual ao "hoje" daquele momento. Muitos dançavam tão inebriados de si mesmos que pareciam nem ouvir a música que vinha dos trios. Faziam seu próprio ritmo, criavam seus passos, moviam-se no seu mundo interior.
            Faziam, esses meninos e meninas distanciados do "bacana", aquilo que os estudiosos chamam de carnavalização do mundo oficial. Em suas casas lá longe, receberam as notícias de um lugar onde os gays podem vestir uma camisa listada e sair por aí - às vezes, apanhando até a morte, mas isso acontece na rua de baixo também, mas quando é na Paulista vira notícia. Viam a cantora famosa exibir sua companheira e dizer "estou casada com ela" de boca cheia (e nessa hora deu pra sentir que o gesto de Daniela Mercury vai além dela mesma). Era ali, na Paulista, que eles deviam estar.
            Deviam mesmo. O "mundo gay oficial" já cresceu a ponto de poder ser virado do avesso e carnavalizado, sem que seja preciso transformá-lo em personagem caricato de novela. As crianças pintadas e embriagadas nos devolvem - de forma exagerada, over, pantagruélica - o mundo que vendemos pra eles como o mundo certo, sem Felicianos, Franciscos e Malafaias condenando ao fogo eterno. Mas atentemos para o recado que eles trazem: eles não querem ser castigados pelas igrejas, mas também não engolem a ditadura dos cheirosinhos. Sem jeans de grife, sem conhecer Nova York ou badalar no Ritz, eles só querem botar seus blocos na rua. Abram passagem.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Escárnio e Barbárie


            
Já faz um tempo que venho ensaiando retomar o blog, mas a velocidade da vida tem sido maior que meu ímpeto opinativo. A cada fato que surge no noticiário, maior é o meu espanto, o choque, o "isso não está acontecendo" invadindo a alma. Das leviandades proferidas pelo deputado pastor Feliciano à discussão sangrenta sobre redução da maioridade penal, passando por crimes que nem os roteiristas mais encapetados de Hollywood conseguiriam bolar... A geleia geral que o Brasil anunciava nos anos 60 virou um sarapatel indigesto.
            Nosso horóscopo, como nação, tem somente dois signos: Escárnio e Barbárie. Um está ligado ao outro, um gera o outro, um consome o outro. E ambos renascem, como paródia da fênix da mitologia, dos próprios excrementos. Colocar o homofóbico racista à frente de uma comissão que deveria lutar pelos Direitos Humanos... colocar um condenado por improbidade na comissão de Ética... Governar fazendo da patuleia uma enorme torcida figurante, pronta apenas para aplaudir inauguração... Dar adeus às ideologias e abraçar de vez o casuísmo... Ou, como hoje, culpar os usuários pelo caos no transporte público da maior cidade do país... Tudo isso é regra de etiqueta no país do Escárnio.
            Poderia ser apenas um filme B de horror, daqueles que passam de madrugada e não nos afetam. Mas não é. O escárnio oficial é um fermento fedorento, um bolor que rapidamente toma conta das juntas morais do país. Vaza dos palácios e chega às ruas, às lojas e bares, aos lares. E quando se mistura a ele o perigoso tempero do "pra farinha pouca, meu pirão primeiro", a desgraça está feita.
            O território do Escárnio, então, cede espaço à Barbárie. É do escárnio oficial que nasce a fama de impunidade, a filosofia do jeitinho, o conceito de que, por aqui, tem lei que não pega - como semente atirada em terreno de pedra. Quando o deputado esbraveja que não vai obedecer o juiz do Supremo Tribunal - e nem vou entrar aqui no mérito do que ordenou o juiz, ele também dado a desvarios absolutistas - , quando o deputado ameaça ignorar a Lei, não há porque esperar que um adolescente criado a iogurte e maçã fresquinha tenha de se submeter às regras. Se o deputado pode, eu também posso - eis o resumo.
            Se o deputado pode ignorar a voz das ruas por que eu devo obedecer o aviso de desligar o celular no cinema, no teatro, no avião? É meu, eu tenho direito de usar. Se o vice-governador só se manifesta sobre a violência urbana quando o carro de sua filha é atingido, por que o filho mimado de um aposentado precisa se preocupar em socorrer o ciclista atropelado na Avenida Paulista? Só por que sobrou um braço dele no carro? Oras.
            Por que devemos discutir a redução da maioridade penal? Por que mataram algumas pessoas de classe média? Enquanto morriam somente os jovens da periferia, ninguém pensou no assunto... Mas reduzir a discussão a esse maniqueísmo social é indigência cultural. Como cidadão, eu não sei ainda o que pensar. Argumentos para os dois lados, há. Ouço, pondero e indecido.
            Só noto, horrorizado, que os crimes crescem em violência e desumanidade. O que fazer com quem ateia fogo a uma vítima? O que fazer com quem atira a sangue frio  no menino que não reagiu? Colocá-lo na prisão não vai resolver o problema. Mas deixá-lo impune também não. A não ser que a ideia embutida na discussão seja adotar de vez e oficialmente a pena de morte.
            Foi isso que me assustou quando começaram a pipocar os bate-bocas sobre a maioridade penal. Os mais radicais queriam mesmo era "meter uma bala na cabeça desses animais"- palavras extraídas de um post no facebook. A barbárie de lá vai ser combatida com a barbárie de cá, é isso mesmo?
            Num país em que o condenado que já cumpriu sua pena mofa na cadeia, porque a Justiça esquece de tirá-lo de lá, é bastante arriscado adotar uma medida tão definitiva quanto a pena de morte. Se não confiamos na Justiça para prender, tratar e reeducar nossos presos, por que haveremos de confiar na que aplica a pena capital?
            Da guerra de barbáries, de selvagerias de parte a parte, brota novamente o escárnio. Defende-se a impunidade de um criminoso cruel e ainda jovem com a mesma energia com que se advoga o direito do jovem em eleger o presidente e até em escolher o próprio sexo. Por fim, qual será o critério adotado pra reduzir a maioridade penal? A julgar pelo comportamento cada vez mais infantil de nossos "jovens" de 30 anos, a maioridade penal deveria ser ampliada, em vez de reduzida.
            Será essa é a filosofia cínica que nos move? Será que o deus que rege nosso signo é Saturno, o que devorava os filhos recém-nascidos para que não lhe tomassem o trono?


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Me barra, que eu também sou blogueiro!


            "Não acredito numa só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-las". A frase de Voltaire, incluída na peça "Liberdade, Liberdade", que Millôr Fernandes e Flávio Rangel escreveram em 1965, só chegou ao Jardim Brasil, onde eu morava, cerca de 10 anos depois. Pra minha cabeça adolescente, aquilo caiu como um machado - e eu nem lembro mais o nome da peça que o grupo de teatro do bairro apresentava nos salões da Igreja Nossa Senhora da Livração, mas lembro que era uma peça de protesto e, na época, eu achava que a Teologia da Libertação tinha vindo pra ficar.
            O pensamento de Voltaire virou uma espécie de lema da minha vida e eu tento - embora seja difícil - sempre me guiar por ele. Por isso, assisto com espanto, tristeza e medo as incansáveis manifestações contra a viagem que a blogueira cubana Yoani Sanchez está fazendo pelo Brasil.
            Feinha, cabeleira de testemunha de Jeová em missão evangélica, figurino de quem se vestiu quando a casa começou a pegar fogo, Yoani se transformou na Musa do Verão 2013. Ela é a voz da oposição em Cuba, é a dissidente que resiste aos safanões do governo absolutista, etc etc etc. Como a última moda - no Brasil e no mundo - é ser de direita,  Yoani virou mito, mártir, uma versão caribenha da donzela de Orleans na luta contra os gigantes barbudos de sua ilha.
            Yoani, é bom que se diga, tem todo o direito de achar o governo dos Castro - o único que ela conheceu em Cuba, aliás - uma bela duma porcaria. Quando visitei a Ilha há alguns anos, tive boas surpresas: educação e saúde são levadas a sério, sim, por lá, isso é inegável. E não venham os defensores de Miss Sanchez dizerem que só isso não basta. Não basta, mas ajuda muito.
            Mas vamos à visita da Señorita Sanchez ao Brasil. Que país estará sendo mostrado a ela por seus anfitriões? Nem dá pra dizer que ela foi recebida pela nata do tucanato, porque o Eduardo Suplicy - depois de dar um abraço em Marina Silva - serviu de guia durante alguns passeios. (Pra mim, Eduardo S. está tentando limpar a barra por ter votado em Renan Calheiros pra presidência do Senado, seguindo orientação partidária e contrariando algo como 90 por cento dos seus eleitores - eu entre eles. Seja como for, o senador petista está sendo uma das vozes mais democráticas no meio desse desfile de protestos ensandecidos).
            Que Brasil Yoani levará na lembrança? Se for o Brasil derrotado que o PSDB apregoa, vai ser uma péssima imagem do capitalismo, é bom tomar cuidado. Não dá também pra levantar a bola dos avanços sociais recentes, coisa de petista apoiador de Fidel. Que sinuca!
            Talvez fosse bom fazer só dois passeios oficiais: a escolas e hospitais públicos para que nossa visitante cubana pudesse comparar. Dados publicados na Vejinha desta semana dizem que 28% dos alunos do quinto ano da rede municipal de ensino chegam ao fim do ano letivo sem saber escrever um bilhete pro pai nem ler um gibi. Dos hospitais públicos, basta dizer que uma das grandes campanhas atualmente é querer obrigar político a usá-los - como castigo. Se comparar esses dados, talvez Yoani consiga elogiar alguma coisa em sua ilha.
            Falta-lhe a liberdade de ir e vir, de se exprimir, de fazer o que lhe der na veneta - e isso é essencial, mesmo. Quem passou pelo regime militar aqui, quando até pra se viajar pro exterior (sem ser exilado), a pessoa tinha um imposto altíssimo pra pagar, sabe bem que o ir-e-vir é sagrado. A falta desses direitos é inquestionável.
            No meio do bate-boca, perde-se a noção do meio termo, do relativismo. Ou bem se é contra ou bem se é a favor. Com muito passionalismo, muito radicalismo, pouquíssima inteligência. Boicotar a exibição do documentário que a moça veio exibir em Feira de Santana foi um dos maiores vexames diplomáticos e políticos que qualquer grupo político poderia ter feito. Ouvir a opinião contrária faz alguém perder pontos no boletim ideológico? Se for assim, por favor, protestem. Me xinguem. Puxem meus cabelos (vai dar mais trabalho, porque estão curtos, mas um verdadeiro militante nunca desiste). Aumentem meu ibope, que nem aumentaram o da Yoani. Eu também sou filho de Deus, oras.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A calcinha da deputada


            Foi mais ou menos assim: a atriz, deputada estadual e missionária Myriam Rios (como está em sua página da internet) apresentou um projeto de lei mirando os bons costumes. O governador Sergio Cabral já assinou e a lei está valendo. Nas reportagens que li, não dava pra entender direito o que eram os tais bons costumes que a parlamentar defendia. Mas na chuva de posts que invadiu as redes sociais deu pra entender uma coisa: preconceito é uma atitude daninha, seja contra ou a favor da gente.
            No caso, o preconceito foi contra a deputada, cujo projeto de lei é mesmo estapafúrdio. As armas usadas para atacá-lo, no entanto, foram as piores possíveis: alguém fuçou na internet e descobriu imagens dos tempos em que a hoje política era somente atriz e tinha um corpinho que não era de se jogar fora. Sucesso em novelas da Globo, jovenzinha com tudo em cima e mais um pouco, Myriam Rios sucumbiu às propostas de fotos sensuais, nua ou seminua - tanto faz. Dizia-se nos posts que uma pessoa que fez aquelas fotos não tem o direito de hoje, enfiar o dedo moralista no nariz da gente mais soltinha e despreocupada.
            Que ela não tem por que se meter nos bons costumes alheios, é ponto pacífico. Certamente o Estado do Rio tem problemas muito mais sérios pra assembleia legislativa cuidar. Se queremos mesmo atacar a lei da Myriam, devemos mirar no que ela tem de tacanha, reducionista, cafona - mas não vamos agir também de maneira tacanha, reducionista e cafona. Recorrer ao passado doidivanas de Myriam Rios não é o melhor meio de anular sua lei do bom comportamento.
            Profissional que era, Myriam deve ter recebido pra posar pras fotos. Assim como são profissionais e recebem o combinado as moças que saem nas capas da Playboy e da Sexy (e os moços da G, da Júnior, etc, também). Se hoje "acusamos" Myriam de ter feito aqueles trabalhos, nada impedirá que amanhã ou depois alguém saque da algibeira as fotos que muitas moças legais fazem por aí. Eu mesmo sou amigo de quatro atrizes que foram capa da Playboy e posso garantir que nenhuma delas tem comportamento moral discutível.
            Myriam Rios já fez muita besteira na vida - inclusive atuar. Casou com Roberto Carlos, virou cristã militante e anunciou com orgulho estar há mais de 10 anos sem sexo. Igualou homossexualismo com pedofilia, causou rebuliço, pediu desculpas. E agora surge com essa lei boko-moko. Se ela tivesse levado uma vida de monja, nunca tivesse blasfemado ou roubado doce de criança, mesmo assim seu projeto de lei seria, no mínimo, risível. Não é o fato de ela ter mostrado as pudendas pra garotada que a desautoriza.
            Como todo mundo, Myriam pode ter mudado de opinião e ponto de vista ao longo dos anos. Quem não muda tem problemas sérios de aprendizado. Até onde eu saiba, conta a favor da deputada ela não ter tentado apagar seu passado de saliências - ao contrário daquela apresentadora loira cinquentona com voz de criança atrasada na escola. Myriam fez o que fez, as fotos comprovam e ela agora tornou-se o símbolo da caretice. O chato nisso é que milhares de pessoas deram seu voto à caretice da moça.
            Meu medo na cruzada moralista anti-Myriam é o que ela esconde: o acanhado limite que cada um que se diz liberado impõe ao outro. Infelizmente, é possível, sim, ser tacanho quando se ataca a caretice.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Enganações


            Somos um povo que se engana. Nosso padroeiro deveria ser o Gepeto e nosso símbolo na Copa do Mundo bem que podia ser o Pinóquio. Mentimos para nós mesmos o tempo inteiro. Criamos leis que, a exemplo de plantas no deserto, podem "não pegar." Espalhamos por todas as empresas um Serviço de Atendimento ao Consumidor que faz pouco dos clientes - e, como diz minha amiga Gabriela Erbetta, o "Fale Conosco" dos sites deveria ter um subtítulo: "mas nós não ouviremos você". Somos campeões mundiais em auto-engodo e isso, estranhamente, não nos afeta. Aliás, até nos deixa orgulhosos e felizes.
            Recentemente, antes de um show no Sesc Pinheiros, uma voz anunciava, de maneira clara e bem articulada, que era proibido tirar fotos e filmar o espetáculo. Aconselhava também a desligar os celulares. Mal as luzes se apagaram e o que se viu foi um mar de celulares e máquinas registrando cada momento do show. Era como se a regra anunciada no alto falante só valesse para marcianos portando armas a laser ou duendes recém-chegados de algum arco-íris distante. Nenhum dos presentes se julgava submetido a uma norma tão esquisita: "Como assim, não fotografar o show? Eu paguei o ingresso, tenho direito!"
            O grande problema de as pessoas ignorarem o aviso de "desliguem seus celulares" vai além da desobediência, da travessura. Ela nasce, na verdade, da falta de punição. Além de avisar que é proibido fotografar o espetáculo, a casa deveria ter seguranças, fiscais, cães perdigueiros - sei lá - para alertar os infratores. "Olha, não pode fazer isso". Alertada uma ou duas vezes, a pessoa que insistisse teria o aparelho confiscado e só devolvido ao fim do evento. Será que isso é ilegal? Ou a norma anunciada é que é? Se for, pra que anunciar?
            Algo parecido ocorre com a bliz da Lei Seca. A tolerância zero foi bem recebida até por aqueles que costumam beber e dirigir sem causar transtornos. Há um ideal de segurança - "eu posso dirigir bem, o problema são os outros motoristas" - que justifica a severidade da lei. Acontece que, se beber e provocar um acidente com vítima fatal, o sujeito vai pagar uma multa menor do que se "apenas" dirigir alcoolizado! É como se beber e dirigir fosse um pecado mortal. E provocar a morte de alguém no trânsito não passasse de uma malcriação. Ah, somos falsos, falsos...
            Em Salvador, uma lei implantada há cerca de dois anos, pôs fim às barracas de praia, onde nativos e turistas podiam beber, petiscar e passar algumas horas à vontade. Notem: Salvador é uma cidade com praias belíssimas e a lei caída do céu queria obrigar todo mundo a carregar um isopor onde guardaria seus beberets, comerets e lixerets. Funcionou? Claro que não.
            Do Porto da Barra a Stella Maris, o que se vê nas praias soteropolitanas é um colorido mar de guarda-sóis. Instalado ali, o turista pode tomar sua cervejinha gelada, comer um acarajé (tem sempre uma baiana ao alcance do "ei, menino!") e até ter os pés molhados por água do mar, gentilmente despejada por um funcionário das barracas. Ué, mas elas não estão mais proibidas? Estão, mas continuam. Elas não existem mais como estrutura física - parede, banheiro, chuveiro, lata de lixo. Você consome o que quer e deixa por ali, na areia. No fim do dia, o mar quebra na praia, bonito, bonito - e recebe de prêmio as garrafas, copos de plástico, palitos e papeis deixados pelos veranistas. É nojento.
            Existem várias explicações históricas e sociológicas para tamanho desapego da verdade. Uns culpam a colonização lusitana, outros a série de ditaduras com que nos criaram e outros, ainda, a indolência tropical. Nada justifica. Num tempo em que todo mundo defende seus direitos com unhas e dentes, mas esquece da lista de deveres a ser cumprida, a hipocrisia transformada em hábito cotidiano ganha contornos doentios, como se fosse uma doença que podia ser tratada com vacina - mas ah, ninguém quer sentir a dor da agulha...

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A mesma praça...


Fui checar no dicionário. Praça continua sendo definida como espaço público destinado ao lazer e ao descanso. "Geralmente", alerta o Aulete, "tem bancos, coretos e plantas ornamentais." A dúvida sobre uma possível nova conceituação do verbete me bateu desde que as redes sociais e os jornais passaram a exibir a imagem do confronto entre homens da Guarda Civil Metropolitana e skatistas na Praça Roosevelt, agora reformada e devolvida à população.
            Era mais um imbróglio na história desta praça. O antigo terreno de d. Veridiana Prado foi transformado, no final dos anos 60, num monumento ao concreto desconhecido pelo paisagista português Roberto Coelho Cardozo. Foram décadas de convívio com aquela praça de dois pisos - era até bonito, quando bem cuidado: tinha supermercado 24 horas, banheiro público, correio, espaço pra correr e brincar... Acabou virando tudo um "valhacouto de marginais",  como diriam os antigos repórteres policiais.
            A dignidade do espaço começou a ser resgatada com a chegada dos grupos teatrais... Mas é bom lembrar que, nos anos 70, as mesmas calçadas dos Parlapas e dos Satyros recebiam os frequentadores do Cine Bijou, onde só passava "filme antigo e de arte". Nos anos 80, chegou a funcionar uma cantina bem simpática, "Macarrão". Mas aí o tráfico chegou com tudo. Nos anos 2000, a proximidade com políticos no poder - o então governador José Serra era habituê das sessões teatrais dos Satyros - acabou dando início ao processo de restauração da praça.
            Reinaugurada a praça, com tanto concreto quanto antes, e umas árvores mequetrefes representando sem muito entusiasmo a flora urbana, começaram os problemas. Os skatistas se julgam donos do espaço. Os moradores ao redor também. Os ciclistas, os donos de cachorro, todo mundo tem direito a um pedacinho de seu. Tem mesmo. Mas cadê que o povo se entende?
            Com a arrogância típica da juventude - embora alguns já tenham passado pra fase adulta há tempos -, os skatistas ensaiam suas manobras radicais o tempo todo. É bonito, mas faz um ruído diabólico. Especialmente de madrugada. Junta-se a isso, a prepotência dos guardas civis: um dos principais envolvidos estava à paisana e já responde a outros processos por má conduta. A falta de bom senso dá o toque que faltava. O resultado foi o que se viu: agressão física, xingamento, o diabo.
            Até o momento, ninguém conseguiu sequer sugerir que se estabeleçam regras para o uso da praça. "Skate, das 9 às 18 horas", por exemplo. Vai ser obedecido? Dificilmente, a moçada não é muito chegada a cumprir regras (aliás, essa é uma das funções juvenis, testar o elástico das regras até o limite). Mas haveria pelo menos uma baliza pra guiar a discussão. Do jeito que está, fica tudo por conta do freguês. E o que não falta é freguês.
            A cada dia que passa, mais gente se julga com direitos a tudo. Com razão! O complicado é que poucos entendem que, no mesmo pacote dos direitos, vem o dos deveres. De uma vez por todas, convívio social não é "eu pago imposto, faço o que quero e dane-se o resto". O cidadão do andar de baixo e a vizinha do andar de cima também pagam imposto, também têm direito, também querem puxar a brasa pra sua sardinha. Não é fácil. Com isso, o espaço que deveria servir pra convivência se transforma no epicentro das divergências.
            Nas cidades brasileiras, em particular, onde antes famílias passavam a tarde de domingo, jovens se paqueravam e havia, sei lá, um velhinho do realejo, agora o que existe é uma procissão de desvalidos, miseráveis, mendigos, noiados e outros exemplos de degradação humana. Ai de você se precisar parar pra tomar um ar, dar um tempo, esperar alguém... Vai ficar de pé, porque bancos são raros. E os poucos são anti-mendigos, com ferrinhos separando um assento do outro - namorar juntinho, nem pensar.
            Perdemos a mesma praça, o mesmo banco e o mesmo jardim. Nunca teremos uma Place des Vosges, como em Paris (aquela em que morava o escritor Victor Hugo, linda, com seus arcos)... Jamais ergueremos uma praça como a Grand Place de Bruxelas, certamente uma das mais bonitas do mundo...  Só conseguimos mesmo seguir o exemplo pouco salutar do confronto entre estudantes e militares na China, em 1989. Desde então, nem mesmo a Praça da Paz Celestial fez por merecer nome tão poético.
            Surpreendendo quem não via comunismo em nossas polícias, nossa guarda civil exibiu inesperada coloratura maoísta... Mas, enquanto os chineses mantinham o conflito no nível homem-máquina, nossos bravos policiais tropicalizaram e partiram pro contato humano - e o que se viu foi uma gravata aplicada com empenho. Devíamos ter o mesmo entusiasmo pra tentar entender o outro - isso vale pra todo mundo, incluindo a moradora velhinha que reclama de tudo.